Sociedade em Rede

Ana Clara Ferrari*

Historicamente, a evolução tecnológica não é uma novidade deste século, tampouco a criação de novas formas de se comunicar. O que difere, então, essa era digital das outras? A princípio, podemos destacar dois eixos: primeiro, a condensação acelerada entre transformação e tempo — tudo se deprecia, ou seja, “fica ultrapassado” mais rapidamente — e as instituições que compõem a sociedade, a saber, Estado e iniciativa privada têm dificuldades em se adaptar e, quando o faz, é de forma vagarosa e enviesada. E o segundo, parte das consequências do primeiro, é o surgimento do fenômeno do individualismo em rede que, sob a perspectiva do Estado democrático, torna-se quase um paradoxo, dado que a essência da lógica do poder público é o coletivo, não o individual.

Em outras palavras, torna-se um processo mais complexo integrar, compreender e se articular diante desse fenômeno “individualista em rede” dentro de um regime que se organiza, ou deveria se organizar, a partir da lógica da coisa pública, a rede publica.

E, contido nesse furacão da comunicação do século 21 estão as mídias sociais. Um produto do cruzamento entre a hiperexposição do privado e a conexão em rede, elas têm se tornado um instrumento a ser desvendado pelo poder público, partidos e organizações.

No Brasil, o cenário econômico favorável dos anos de governo Lula, apesar da crise em 2009, permitiu um avanço significativo na posse do uso de celular entre os brasileiros que impulsionou também o aumento do acesso à internet no país. Em 2013, mais de 130 milhões (75,2%) de pessoas possuíam um celular, isso representa três quartos da população brasileira acima de 10 anos, segundo dados do PNAD. O aumento na penetração dos telefones móveis chama a atenção em comparação à última pesquisa. Em 2008, o IBGE havia contabilizado 87,1 milhões pessoas com telefone móvel para uso pessoal. Em cinco anos, houve aumento de 131,4 % na posse desses dispositivos. Já em relação ao acesso à internet, quase metade dos domicílios brasileiros possuem acesso. São 65,1 milhões de domicílios com internet, sendo o microcomputador o principal meio de acesso (88,4%). O acesso via telefone móvel estava presente em 53,6% dos domicílios, enquanto o tablet, em 17,2% deles. Os dados do PNAD, em 2013, revelam que mais de 50% dos domicílios com renda de um a dois salários mínimos utilizavam a internet com frequência. Revelam também que navegar pela rede foi mais frequente entre jovens de 15 a 17 anos (75,7%) e cresceu com a escolaridade, variando de 5,4%, na população sem instrução ou com menos de um ano de estudo, até 89,8%, entre as pessoas com 15 anos ou mais de estudo.

A partir desses dados aliados ao fenômeno mundial da difusão das redes sociais, podemos dizer que o Brasil começa a sistematizar e operacionalizar uma sociedade em rede – aqui entendida como pessoas conectadas que se intercomunicam e, de alguma forma, se organizam por plataformas digitais para tomar uma ação política – há pouco menos de dez anos, sendo as manifestações de junho de 2013 o marco nacional desta nova forma não só de comunicação, mas também de meios e ferramentas para agir politicamente. Os protestos também catalisaram um processo de assimilação da “nova era” digital pelas instituições, mas que ainda permanece descontinuado.

 

Individualismo em rede
Atualmente, a lógica pós-modernista contemporânea que pauta as relações sociais entre os indivíduos tem se consolidado como o resultado da combinação tanto das inovações digitais – que criam um espaço virtual para o estabelecimento das relações humanas – quanto do aprofundamento, em um sentido mais geral, da lógica capitalista e neoliberal nas relações sociais.

As inovações digitais do último século permitiram a constituição de uma sociedade em rede em que as pessoas estão mais conectadas, dialogam “full time” por mensagens instantâneas, com acesso 24h a qualquer tipo de informação (filtrada por grandes corporações) e se sentem seguras com a sensação de pertencimento e de “ter voz” por meio das redes sociais.

“Essas apropriações [de perfis pessoais em redes sociais] funcionam como uma presença do “eu” no ciberespaço, um espaço privado e, ao mesmo tempo, público. Essa individualização dessa expressão, de alguém “que fala” através desse espaço é que permite que as redes sociais sejam expressas na Internet. […] Esse imperativo [de visibilidade], decorrente da intersecção entre o público e o privado, para ser uma consequência direta do fenômeno globalizante, que exacerba o individualismo. É preciso ser “visto” para existir no ciberespaço”

RECUERO, Raquel (2009)

Na mesma medida, porém, este também é o mundo onde surgem os workaholics digitais que incorporam suas horas de trabalho entre um clique e outro fora do expediente, agências publicitárias lucram com anúncios, empresas vendem e compram dados de estudos avançados de comportamento e grandes corporações monopolizam e controlam o que há de mais individual no ser humano: a subjetividade.

Esse fenômeno já apontava Edgar Morin em 1997, de forma indireta, ao constatar o avanço desenfreado da lógica consumista sobre a cultura de lazer da sociedade. Uma vez que os cidadãos não utilizam mais seu tempo livre para descansar, passar mais tempo com a família ou ser co-participante de festas e rituais coletivos, esse tempo é focado exclusivamente no bem estar individual, no consumo e na vida privada.

“O lazer não é mais apenas o vazio do repouso e da recuperação física e nervosa; não é mais a participação coletiva na festa, não é tanto a participação nas atividades familiares produtivas, é também, progressivamente, a possibilidade de ter uma vida consumidora”.

MORIN, Edgar 1997

Atualmente, é possível fazer uma atualização dessa constatação de Morin e incluir a possibilidade de ter uma vida digital, que inclui o consumo exacerbado de informações compartilhadas nas redes sociais, de forma difusa, curtindo e compartilhando páginas e checando as atualizações alheias.

E, ainda mais grave do que isso, essa cultura de lazer – que, obviamente, pressupõe um tempo de lazer – também passa a ser engolida de volta pelas próprias horas de trabalho, um verdadeiro mashup que descompartimenta a vida das pessoas, a partir do acompanhamento online das demandas da empresa, checar e-mail profissional fora do horário de trabalho, entre outras ações semelhantes.

Esses fenômenos acontecem de tal forma que difundem, se espraiam e se incorporam ao subjetivo das pessoas de modo que a dependência da vida digital se torna um fator determinante para realizar ações na vida real – cidadãos de grandes metrópoles se deslocam por rotas de waze e mapas digitais e, ao mesmo tempo, enfraquecem a relação de conhecimento da cidade, por exemplo.

Um fato não é um fato, uma festa não é uma festa, um ritual – batizado, casamento, separação – não é um ritual se não está postado em redes sociais. A existência do sentido do ser e do estar torna-se cada vez mais dependente do seu equivalente de ser e estar digital, como afirma Bauman “na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte”

BAUMAN, Zygmunt 2008

Sem falar em recursos próprios de redes mais consolidadas como o Facebook e Instagram com a estrutura de algoritmos que selecionam o olhar do internauta, criação de “bolhas” de interesse, uso de robôs inteligentes que influenciam diretamente no modo como as pessoas veem o mundo e, mais, refletem sobre ele e formam opinião.

As pessoas são bombardeadas por uma enxurrada de informações — muitas vezes falsas como os casos de fake news — e não as assimilam totalmente; as novas tecnologias começam a introduzir uma cultura imediatista e individualista, ainda que conectada, que perpassam todas as esferas sociais.

Os reflexos da caracterização desse tipo de sociedade consolidam-se, de forma difusa e não sistematizada (ao menos para os indivíduos), em uma forte pressão social que demanda intensamente por respostas rápidas pautadas por comandos digitais e pelo consumo ávido por conteúdos superficiais de interesse efêmero com alto nível de compartilhamento.

Neste sentido, ao criar essa necessidade com essas características específicas, a Era Digital, enquanto parte da lógica pós-modernista, sacia o indivíduo com informação, respostas rápidas, dá a ele a possibilidade de compartilhar e expressar sua opinião e, portanto, gera uma sensação de pertencimento de aparência coletiva, mas de caráter individualista.

 

Novas tecnologias e novas mídias. O potencial de uma nova cultura política

Ainda que os espólios de 2013 tenham se traduzido, de forma geral, na preparação de um amplo exército de ataque à democracia e aos direitos sociais, não se trata de um fenômeno intrínseco às redes sociais e novas tecnologias. Estamos diante de um espaço que, mesmo com todas as limitações, é fundamental que os partidos progressistas, movimentos e organizações dominem a sua lógica, não apenas para disputar o espaço (que é importante também), mas para que estejam paripassu com o “novo modo de fazer política” ou um novo modus operandi da política que pode vir a se transformar em uma nova cultura política, e, quem sabe, a partir daí, repensar a própria estrutura.

Portanto, a partir da compreensão profunda desse cenário, é possível avançar nos próximos passos. O modo como as pessoas se comunicam, se organizam e se relacionam entre si e com as instâncias que compõem a sociedade são estratégicos para que elas vejam a realidade, reflitam sobre ela e formem suas próprias opiniões e convicções. Nesse sentido, há um espaço de diálogo permeado pelas mídias digitais subaproveitado pela esquerda e setores progressistas no geral. Por fim, é diante de todas essas angústias e reflexões que os primeiros passos devem ser dados. Urgentemente.

*Ana Clara Ferrari é formada em Comunicação Social pela FACAMP e pós graduada em Gestão Pública pela FESPSP

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